Decidi inaugurar o blog com um texto maravilhoso.

No momento que comecei a ler, percebi que se tratava de algo especial… Alguém tinha conseguido colocar em palavras tudo aquilo que sempre senti ao ler um cardápio!

Gente… Achei que era só comigo!

Foi aí que caiu minha ficha de que existem outros mortais que como eu AMAM comida e tudo o que ela representa a tal ponto que podemos transformar um simples brigadeiro na razão de nossa existência naquele momento.

ENJOY!

Decifra-me ou não me devoras

Por Ricardo Freire para Revista Época –  ano de 2005

Um bom cardápio contém tudo o que você espera de uma boa leitura. Romance. Mistério. Reviravoltas abruptas de enredo. Passagens picantes. Finais adocicados. Você começa a ler e quando se dá conta já está na última página.

Sabe uma coisa que eu detesto? Eu detesto quando chega o maître e começa a recitar as recomendações do dia. Não é educado puxar conversa com uma pessoa que está absorta num texto interessante. Naquele momento eu e o cardápio estamos nos conhecendo. Deixe-nos a sós por alguns instantes, por favor.

Trata-se de um jogo de sedução. Você abre um cardápio e ele começa a dizer coisas bonitas para te conquistar. Alguns já começam com cantadas clássicas e infalíveis. Quando um cardápio segura na sua mão e diz “Bruschetta!”, não há como resistir.

Nesse momento, eu só usaria o maître como dicionário. Por favor: o que que dizer “salteado”? Ah – é o que antigamente se dizia “sauté”? Que interessante! Agora com licença, que eu preciso continuar a ler o cardápio.

Eu tampouco pediria detalhes muito técnicos. Não quero saber se o pobre do peito do frango foi marinado numa infusão de ervas, para só então ser desossado e levado ao forno antes que o desfiassem. Eu estou ali para comer, não para aprender a receita. Se a Juliana Paes contasse tudo o que faz para ficar daquele jeito, você também perderia o apetite.

Na dúvida entre dois pratos, o melhor é consultar quem está com você na mesa. Diga o nome dos pratos de maneira bem blasé. Em seguida, desconsidere a resposta. Peça o prato que você perceba que causará mais inveja a quem você perguntou.

Sim. Você nunca pede um prato no restaurante apenas para se dar prazer. Você escolhe um prato, na verdade, para causar ciúme. Você quer mostrar à pessoa amada que a qualquer momento ela pode ser trocada por um suflê. Você quer provar para seus amigos e colegas de trabalho que pode sair com coisas bem mais gostosas do que eles.

É por isso que os cardápios são escritos com técnicas que parecem tiradas de anúncios classificados pessoais. Filé alto, corado e apimentado procura pessoas interessadas num relacionamento quente, envolvendo um pouco de sangue e muito gratin dauphinois. Uau!

Algumas palavras em francês são fundamentais. Francês é o idioma ancestral dos cardápios – e é justamente o que proporciona uma certa conotação erótica aos pratos. “Gratin dauphinois”, por exemplo, não significa só batatas fatiadas e gratinadas – significa também espelho no teto. “Sauté”, por sua vez, significa cama redonda. (Já “salteado” significa apenas passado na manteiga.)

Assim como acontece com os livros, alguns cardápios começam muito bem, mas não conseguem manter o nível depois. Nesse caso, é melhor se contentar com os personagens do capítulo das entradas, e se desinteressar pelo epílogo.

O interessante da leitura de cardápios é que você pode ir direto para o desfecho, sem estragar seu prazer pela história. Quanta gente não espia primeiro a sobremesa e passa o jantar inteiro suspirando por antecipação?

Ler cardápios só não é um prazer quando o cardápio é… mal escrito. Eu perco a fome quando um cardápio chama legumes de “vegetais”. Não consigo comer lasanhas com “z”. E, acima de tudo, passo ao largo de qualquer sobremesa em que o coco venha acentuado!