Duccio, as origens da arte ocidental e a humanização do sagrado

Há dois grandes conjuntos artísticos em torno dos anos 1300 que redefiniram a Arte Ocidental: os afrescos de Giotto (1266-1337) na Capela Arena ou capela de Scrovegni, em Pádua, e a Maestà (Majestade) de Duccio (1255-1319) na Catedral de Siena.

A humanização do sagrado, influência direta das novas ordens Franciscanas e Dominicanas, rompe a tradição Medieval e Bizantina da representação da Arte Sagrada e anuncia um Renascimento, um homem mais divino e um Deus mais humano. É Duccio di Buoninsegna, o mais celebrado pintor da escola de Siena que vai infundir na beleza austera da tradicional Arte Bizantina um lirismo e uma humanidade como nunca antes.
Sua Maestà, que significa a majestade de Nossa Senhora e tem em seu centro a entronização da Virgem com o Menino, rodeados por anjos e santos, foi encomendada em 1308 para o altar mor da Catedral de Siena.

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Imagem 1 – Duccio di Buoninsegna, 1308-11, Maestà, frente, ouro e têmpera sobre madeira. Coleção Museu dell’Opera del Duomo, Siena.

Os 25 m² deste grande conjunto que formava a Maestà foram carregados em uma procissão do ateliê de Duccio até a Catedral.

Imagem 2 – Fotomontagem da parte frontal da Maestà de Duccio.

Apesar de ter sido desmantelada em 1711, dos 84 panéis que constituíam a obra, grande parte ainda resta no Museo dell’Opera del Duomo, em Siena.
Ter um contato direto com um Duccio é uma experiência arrebatadora, como diz o curador do Metropolitan Museum de NY para Pinturas Europeias, Keith Christiansen: “Posso lembrar-me perfeitamente da primeira vez que visitei Siena, em 1968, e vi a Maestà. Esta é uma daquelas pinturas que fazem você praticamente perder a consciência. Ela o absorve por sua ternura e humanidade. Ao mesmo tempo, parece ser algo que pertence a um outro mundo, a uma esfera sagrada onde você também toma parte.”

Imagem 3 – Duccio di Buoninsegna, 1308-11, Maestà, frente, ouro e têmpera sobre madeira. Detalhe. Coleção Museu dell’Opera del Duomo, Siena.

Na manhã de 24 de setembro de 2004, quando Keith Christiansen encontra-se com o diretor do Metropolitan Museum, Philippe de Montebello, e um membro da equipe de conservação, Dorothy Mahon, no Aeroporto Internacional de Newark a fim de embarcar em um dia de viagem de negócios a Londres, toda emoção acima descrita, retornaria abruptamente.
Alguns meses antes, no verão, ele havia sido informado que uma extremamente rara e maravilhosa Madonna and Child (Virgem e o Menino) do grande pintor de Siena, Duccio di Buoninsegna, estava sendo vendida privadamente através da casa de leilões Christie’s. Única obra de Duccio ainda em mãos de particulares, colocada à venda pelos herdeiros do industrial, banqueiro e colecionador belga Adolphe Stoclet, agitou o mundo institucional das artes.

Imagem 4 – Duccio di Buoninsegna, Madonna and Child, c.1300, ouro e têmpera sobre madeira (28 x 20,8cm) para devoção pessoal. Moldura original. Coleção do Metropolitan Museum de NY.

Os três, Keith Christiansen, Philippe de Montebello e Dorothy Mahon, foram deixados a sós em um quarto com iluminação natural, na Christie’s da King Street, para poderem analisar e contemplar a obra.

Como um poema ou uma peça de música, uma grande obra de arte, mesmo de pequeno formato, tem o poder de enfeitiçar espectadores sensíveis, levando-os ao mundo de seu criador. Por alguns momentos, os três grandes especialistas ficaram em silêncio, cada um registrando suas próprias impressões. Keith Christiansen sente então a emoção de quase 40 anos atrás, agora nesta pequena pintura, onde há uma intimidade na relação entre a mãe e a criança diferente daquela do altar mor da Catedral de Siena, e também há uma tristeza, ou melhor, uma melancolia escondida na face da Virgem, mais evidente nesta do que naquela grande obra pública.

Imagem 5 – Duccio di Buoninsegna, Madonna and Child, c.1300, ouro e têmpera sobre madeira (28 x 20,8cm) para devoção pessoal. Detalhe.

O menino Deus, o pequeno bambino, afasta o véu que está sobre o rosto de sua mãe com intimidade e ternura, deixando que o olhar da Virgem, já antevendo tudo que está por vir, transmita uma emoção inexplicável, arrebatadora.

Esta emoção também sentiu Philippe de Montebello, que restou por duas horas, em suas próprias palavras “two solid hours”, com a pintura em suas mãos. Ele simplesmente não podia deixá-la ir, não somente como um objeto físico, mas seus olhos não podiam se afastar desta extraordinária imagem da Virgem e do Menino, da divina e também humana comunicação entre eles.

Imagem 6 – Philippe de Montebello olhando a Virgem e o Menino, de Duccio.

A aquisição então pelo Metropolitan Museum era algo absolutamente obrigatório neste momento e, levando em consideração as opiniões seguras dos outros especialistas que o acompanhavam, Philippe de Montebello toma uma rápida decisão e bate o martelo.
Outras instituições estavam seriamente considerando o Duccio e ele tinha que ser incisivo. Estas são qualidades de um grande diretor e ele o foi, por 31 anos.

Havendo ainda tempo antes da viagem de volta, os três resolvem andar alguns quarteirões até a National Gallery e admirar o pequeno tríptico de Duccio que coroa sua coleção de Pintura Italiana Antiga.

Imagem 7 – Duccio di Buoninsegna, Virgem e o Menino com Santos Dominique e Áurea, tríptico portátil, c. 1305-10 (42,5×34,5cm) Coleção da National Gallery de Londres.

No vôo de volta, nossos três mosqueteiros, cúmplices da grande empreitada, dividem a satisfação. Keith Christiansen observa Montebello examinando a lista dos vários fundos que ele deveria aplicar para a compra do Duccio, que seria algo em torno de 40 a 50 milhões de dólares.

“Sim, esta viagem foi só para confirmar que a pintura era tão extraordinária como realmente parecia para mim e, se ela fosse, eu havia determinado que nós iríamos tê-la”, confessou Philippe de Montebello.

Foi sua ação decisiva que trouxe esta verdadeira jóia para a coleção do Metropolitan, confirmando que é nos pequenos frascos que se encontram os grandes perfumes.

Este é o presente do Bom Dia com Arte para todos vocês neste Natal.

Voltem o cursor, admirem novamente esta obra prima de 700 anos, sintam o amor, a ternura, o sagrado, o humano e deixem-se levar. Cada obra de arte causa diferentes emoções e veja quais são as suas. É Natal, abra seu coração e deixe o amor de Deus entrar.

Maria Amália